O Bobo

Inspirado no “Das Vantagens de Ser Bobo de Clarice Lispector”.




Ser bobo é fundamental.

Já reparou que só o bobo pode amar de verdade?

Sim, porque o amor do esperto não tem nada a ver com amor. O amor do esperto é sempre dirigido a alguma coisa, alguém, alguma situação e dura por um determinado período de tempo. Ou seja, é sempre um amor condicionado, e amor condicionado não tem nada a ver com amor, que é algo absoluto e não relativo, como é o amor do esperto. O amor real não depende de nada. Só existe e ponto final.
Então, só mesmo sendo um bobo pra amar qualquer um, qualquer coisa ou situação.
Ou você acha que um esperto consegue amar aquele pivete que aguarda por ele no semáforo, com sabão e rodinho nas mãos e que mesmo sob todas as advertências, arremessa a espuma no vidro do carro do esperto e depois ainda estende a mão cobrando pelo serviço?

Como eu disse, ser bobo é fundamental.

Já reparou que só um bobo pode estar em paz?

Afinal, quem, exceto o bobo, não gostaria de ter algo a mais? Mais dinheiro. Mais tempo. Mais sexo? Mais do mesmo? Mais alguma coisa? Pois bem, acontece que quem quer algo não pode estar paz. E além do mais quem quer algo, provavelmente já tem outras coisas, e assim, para não deixar de ter o que já tem, é preciso que essa coisa seja defendida.
Enfim, é preciso desejar para ter e defender para manter e assim, o esperto tem medo da perda, medo da não conquistar mais e também, obviamente, tem medo do outro esperto, que afinal de contas por também querer mais, pode tentar tomar o que é seu. Olha só em quanta coisa um esperto precisa pensar. Quanta preocupação. E preocupação não tem nada a ver com paz.
Já o bobo, por ser bobo mesmo, pode estar contente e em paz, tendo ou não tendo, e nada querendo.

Ai, ai. Ser bobo é mesmo fundamental.

Pois, vocês já repararam que só o bobo vive de verdade?

Sim, porque tem um, porém também. O bobo, só é bobo depois de tentar se passar por esperto durante algum tempo, até o dia em que descobriu que a esperteza o limitava. Sendo esperto ele não podia ser ele mesmo, de maneira que sendo bobo, além dele mesmo, ele pode ser tudo - menos esperto, é claro.

Mas se só sendo bobo pra ser o que realmente é, quem é então que o esperto está sendo?

Isso é com o esperto, afinal, o esperto, é aquele que sabe tudo. Sabe o que é o certo e o errado. O que é melhor, pior, bonito ou feito. E assim, por tudo saber, pode julgar as situações e os outros. Quando o esperto não sabe a resposta, ele move montanhas pra encontrar uma que lhe satisfaça, e assim, a resposta será sempre a que ele acha mais adequada, uma resposta que ele julga ser a verdade. E como a verdade de um, nunca é a mesma verdade do outro, o esperto sempre passa bem longe da verdade. E fica ainda mais complicado quando o esperto começa a querer impor as suas verdades aos outros. E se o outro não aceitar, bomba no quintal dele, ora essas, afinal, quem não está de acordo com as suas verdades está errado e por tanto é uma ameaça. Mas ameaça a que? As verdades que não tem nada a ver com a verdade de verdade.
Já o bobo. Ah... Esses bobos. Por não saberem de nada, deixam as coisas serem o que são e assim a verdade de cada coisa pode existir.

Ser bobo é mesmo fundamental.

No entanto, existe uma única coisa que o bobo leva a sério. A bobeira! É claro! Sim, porque a bobeira é a vida dele e se a bobeira não fosse levada a sério, ele correria o risco de ser um esperto e assim achar tudo isso uma bobeira.

Mas e então... Se só sendo bobo para amar, encontrar a paz e existir de verdade, porque raios alguém se esforçaria tanto para ser esperto. Essa é mesmo uma boa pergunta. Melhor fazê-la a um esperto. Ou melhor, porque você mesmo não responde?